terça-feira, abril 08, 2008

Cine7 - O Fim (?)



Criado numa época de proliferação quase febril de blogues de todos os tipos na Internet, o Cine7 nasceu da vontade de criar um espaço para reflexão sobre uma arte, uma paixão comum entre um grupo de pessoas, que é o cinema. Cada elemento desse mesmo grupo e respectivos colaboradores conseguiu durante dois anos a proeza de publicar todos os dias uma crítica ou uma opinião, como preferirem, sobre um filme. Os diferentes gostos desses elementos resultaram na publicação de textos sobre os vários géneros de filmes, desde as primeiras décadas do século passado até a actualidade.

Não esquecendo que atrás de um bom filme está um bom realizador, um dos elementos do grupo criou um espaço semanal dedicado a vários realizadores, dos consagrados aos mais ousados e aos que inovaram géneros fílmicos e formas de filmar. Outro elemento escreveu alguns textos sobre épocas especiais em que o cinema teve ideologias, “fases” como a nouvelle vague. O Cine7 esteve sempre atento aos filmes portugueses em cartaz, dispondo de um espaço próprio no blogue; criou um espaço com links para vários blogues também sobre cinema e realizou algumas sondagens.

Isto tudo para dizer que cada um de nós contribuiu à sua maneira e com boa vontade para a criação de um espaço de interacção entre quem escreve um texto sobre um filme e as pessoas que o lêem. Muitos comentários aos filmes deixados pelos inúmeros visitantes do Cine7 foram bons, outros foram maus. Os bons expressavam a sua opinião sobre o filme e fizeram as suas sugestões, enquanto que os maus não souberam respeitar a diferença de opiniões e demonstraram isso de forma desagradável a quem escrevia o texto.

O mais importante é que o blogue permaneceu activo durante muito tempo, até ao dia em que no passado mês de Março completou três anos de existência. A equipa que escrevia mudou quase completamente e as diversas ocupações dos membros só lhes permitiu manter o blogue a meio gás. Mas o gás foi-se acabando pouco a pouco e o blogue ficou muito distante do seu funcionamento inicial. A falta de tempo determina a nossa decisão de deixar o blogue como está, antes que se transformasse numa sombra do que era. Contudo, deixamos em aberto o final deste projecto em comum. Quiçá se um dia voltaremos a “reactivá-lo”? Para todos os que escreveram e colaboraram com o Cine7, fica um sincero agradecimento pela sua disponibilidade.

Para todos fica um precioso e vasto arquivo de filmes que poderá continuar a ser consultado por quem aqui vier parar. Agradecemos a todos os que visitaram o Cine7 ao longo destes três anos, especialmente aos que o fizeram com frequência. Aqui ficam os cumprimentos da equipa. Bons filmes!


domingo, março 16, 2008

O Piano

Título Original:
"The Piano" (1993)

Realização:
Jane Campion

Argumento:
Jane Campion

Actores:
Holly Hunter - Ada McGrath
Harvey Keitel - George Baines
Sam Neill - Alisdair Stewart
Anna Paquin - Flora McGrath


Século XIX, Ada McGrath, uma mulher que não fala desde os seis anos de idade, deixa a Escócia juntamente com a sua filha Flora, para ir viver para a recém colonizada Nova Zelândia, onde oficializará um casamento arranjado. O encontro com o marido, Alisdair Stewart, o qual ela não conhecia, corre mal devido à recusa dele em transportar o piano que é a grande paixão de Ada e a sua melhor forma de se exprimir. Ter de abandonar o seu adorado piano no meio da praia faz com que Ada desde logo antipatize com Alisdair. Entre os homens deste, está George Baines, que se sente atraído por Ada. Aproveitando-se da situação, Baines leva o piano para a sua casa e promete devolvê-lo a Ada caso esta o ensine a tocar. Com o tempo as aulas vão-se transformando em encontros de grande erotismo, nos quais Baines e Ada se descobrem um ao outro e se apaixonam.

Realizado no princípio dos anos noventa, “O Piano” foi o terceiro filme da realizadora Jane Campion. Bem aceite pela crítica, o filme recolheu nomeações e prémios, como por exemplo o Óscar de Melhor Argumento Original para Jane Campion, o Óscar de Melhor Actriz Principal para Holly Hunter e o Óscar de Melhor Actriz Secundária para Anna Paquinn, na altura apenas uma criança, foi uma das mais jovens actrizes a receber um prémio de tamanha importância (pelo menos para Hollywood) na sétima arte.

É pena que Holly Hunter tenha andado meio desaparecida ao longo destes anos, após a interpretação brilhante em “O Piano” de uma personagem muda que fez com que a actriz desenvolvesse uma grande expressividade no seu papel, há cenas em que percebemos sentimentos e reacções, sem uma única palavra. Mais pena me faz Anna Paquin, mulher feita, que o melhor que conseguiu foi o papel de Vampira (Rogue) na trilogia "X-Men". É o exemplo perfeito de que ganhar um Óscar nem sempre é sinónimo de sorte ou de carreira segura como actriz de cinema.

“O Piano” conta com uma inesquecível banda sonora da responsabilidade de Michael Nyman. Em algumas cenas a própria Holly Hunter tocou músicas de Nymam no piano. Uma das cenas que este filme nos deixa na memória é quando Ada toca no piano que está no meio da praia, enquanto a filha dança ao som da música à beira-mar. Uma comunhão perfeita entre a natureza e a música.

® Isabel Fernandes


sexta-feira, março 14, 2008

Vista Pela Última Vez

Título Original:
"Gone Baby Gone" (2007)

Realização:
Ben Affleck

Argumento:
Ben Affleck & Aaron Stockard, adaptado do romance de Dennis Lehane

Actores:
Casey Affleck - Patrick Kenzie
Michelle Monaghan - Angie Gennaro
Morgan Freeman - Capt. Jack Doyle
Ed Harris - Det. Remy Bressant


Filme em tom policial sobre uma criança desaparecida, revela uma complexa trama de contrastes e ambiguidades, recheada de pessoas reais, palpáveis, de carne e osso. Assentando principalmente nos pormenores da investigação e nos elementos-chave da temática em questão, mexe nos nossos medos e nas nossas convicções morais, apresentando os diversos pontos de vista sem incidir demasiado em nenhum deles, deixando à nossa discrição a escolha acertada.

Ben Affleck começa finalmente a justificar o pisa-papéis que lhe foi atribuído (e a Matt Damon) por O Bom Rebelde em 1998. Inebriado pelo sucesso fácil (de Armaggedon a Pearl Harbor) e pelo romance de tablóide com Jennifer Lopez, a sua carreira foi conhecendo novos fundos, sendo até responsabilizado por desaires que nem foram culpa sua (Demolidor). Ao interpretar George Reeves em Hollywoodland, foi uma agradável surpresa, tendo talvez contribuído o personagem ter certas afinidades com o actor.

Vista Pela Última Vez é uma surpresa ainda maior porque, para além de ter adaptado o romance de Dennis Lehane, estar atrás das câmaras envolve o controlo de toda a produção e a responsabilidade pelo resultado. Na bagagem de realizador, Affleck trazia unicamente Matei A Minha Esposa Lésbica, Pendurei-a Num Gancho Para Carne E Agora Tenho Um Contrato Para Três Filmes Com A Disney, uma curta-metragem (não escrita por si) de 1993.

2007 é também o ano de Casey Affleck, irmão mais novo de Ben, que recebeu aplausos pelas suas representações em O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford e por Vista Pela Última Vez. Não foi, claramente, uma questão de nepotismo que ditou o protagonismo de Casey, que realça as inseguranças indispensáveis ao papel, com o seu ar inofensivo e a sua voz de falsetto. Com apenas três anos menos do que Ben, Casey já representa desde 1988, sendo o primeiro filme em que foi notado Disposta a Tudo, de Gus Van Sant, em 1995. Também para Van Sant escreveu (com Matt Damon), representou e editou Gerry, em 2002.

Para além de Casey Affleck, marcam presença Morgan Freeman, que dispensa elogios (tanto mais que dizer que está igual a si próprio já nada significa) e Ed Harris, que os merece por inteiro, com mais uma figura marcante. Se Amy Ryan pode ser considerada uma revelação, então a prestação de Michelle Monaghan é apenas mecânica.

Suplantando-se constantemente, Vista Pela Última Vez é um filme que finta a sua própria simplicidade e obriga-nos a questionar as nossas opções. Será a mãe biológica sempre a melhor escolha dos filhos?

A estreia em salas britânicas foi adiada por causa de semelhanças com o caso real do desaparecimento de Madeleine McCann, mas para além do facto de ambas as meninas serem loiras, não há nada que ligue ambas histórias, pese embora a coincidência de a actriz que representa a menina raptada se chamar Madeline O’Brien. A Inglaterra continua a ser dos países onde a Censura tem as tesouras mais afiadas.

® Ricardo Lopes Moura


quinta-feira, março 13, 2008

Os Salteadores da Arca Perdida

Título Original:
"Raiders of the Lost Ark" (1981)

Realização:
Steven Spielberg

Argumento:
George Lucas & Philip Kaufman

Actores:
Harrison Ford - Indiana Jones
Karen Allen - Marion Ravenwood
Paul Freeman - Dr. Rene Belloq
Ronald Lacey - Major Arnold Toht


Num momento em que mais um filme do herói Indiana Jones pode estar a chegar às salas, merece a pena recordar o primeiro filme da série. Há mais de 25 anos, foi um sucesso triunfal para Steven Spielberg que já havia conhecido a consagração com “Tubarão” e “Encontros Imediatos de 3º Grau”. Este filme de aventuras teve, na verdade, um impacto tão poderoso que suscitou sequelas espaçadas no tempo. E efeitos que ainda hoje se fazem sentir de modo mais natural e virtuoso; ou de modo mais cabotino e desinspirado.

A fórmula de “Raiders of the Lost Ark” reside numa acção trepidante com pausas estratégicas. Há um enorme misticismo na procura dos tesouros que tanto são sagrados como valiosos, tanto têm um valor espiritual e religioso como representam fortunas fabulosas – tanto parecem pertencer a um outro mundo como ao nosso. Como se constata num balanço generalizado da história, a moral vem provar que a ambição desmedida é destruidora.

A narrativa decorre em vários pontos geográficos, numa época em que os nazis e a sua ideologia constituíam uma terrível ameaça para a Humanidade. O filme está imbuído de humor o que torna ligeiro o dramatismo de certas cenas e ajuda o espectador a tolerar pormenores completamente inverosímeis. Nada nas histórias do arqueólogo Indiana Jones busca a verosimilhança. O herói é sempre salvo de modo absolutamente inacreditável. As situações são tão emocionantes como é imaginativa a busca de soluções dos argumentistas. (A história nasce da inspiração de George Lucas e de Philip Kaufman, o argumento é desenvolvido por Lawrence Kasdan.)

Há neste patamar de aventuras mirabolantes, uma justaposição do natural e do sobrenatural. Os efeitos especiais do filme são notáveis. A música de John Williams começava a revelar-se verdadeiramente indissociável do universo de Spielberg. Harrison Ford estabelecia-se aqui verdadeiramente como uma estrela de primeiro plano de Hollywood depois de em “Guerra das Estrelas” de George Lucas ter sido um pouco secundarizado por Mark Hamill e Carrie Fisher.

Há aqui a clássica parceria do herói e da heroína mediante uma trama onde são perseguidos por nazis diabólicos, terroristas, serpentes e maldições de meter medo. Parece haver neste tipo de intrigas com um teor místico (sobrenatural) e simultaneamente político, algo daquilo que me deliciava nos livros do Tintim de Hergé. A fórmula do filme doseia os diferentes ingredientes de modo sábio.

Do sucesso deste filme surgiriam obras da época como os da série de “Em Busca da Esmeralda Perdida” e “Jóia do Nilo”. Recentemente, o filme “A Múmia” desenvolveu o mesmo conceito, fazendo equilibrar sequências de acção com cenas de terror e espanto e uma dose de sentimentalismo apimentada com humor. O sucesso deste filme desencadeou também uma sequela e arrecadou bastante dinheiro para os seus produtores.

A sequência inicial de “Os Salteadores da Arca Perdida” tem cerca de meia dúzia de minutos e funciona como uma antecipação do que virá depois. Digamos que define com que linhas se cozem as intrigas daquele universo trepidante. Para inferirmos facilmente que tipo de emoções poderemos esperar posteriormente e também de que heroicidade (às vezes batoteira) vive o Dr. Indiana Jones.

Depois, encontramos um pacato Dr. Jones numa aula pacata de uma pacata rotina. Até tudo se precipitar de novo numa acção vertiginosa e frenética. Então os acontecimentos precipitam-se em catadupa e numa movimentação que se poderia tornar cansativa. Mas o realizador tem o bom senso de quebrar a agitação com cenas mais calmas, estrategicamente inseridas. (Spielberg não seria tão refinado sob este aspecto nas sequelas que vieram depois, particularmente no segundo filme da série).

Um filme ligeiro mas sabiamente dirigido como “Salteadores da Arca Perdida” merece o seu local de destaque na História do Cinema. Trata-se de um produto industrial brilhantemente executado por artificies de grande talento. De resto, o filme nada tem a oferecer senão um entretenimento simpático, um divertimento que se vê (e revê) com agrado porque nada tem a ver com a nossa realidade e é exactamente isso que às vezes buscamos numa sala de cinema – uma diversão ou uma fuga aos dramas do nosso mundo.

® José Varregoso


quarta-feira, março 12, 2008

Estranhos Prazeres

Título Original:
"Strange Days" (1995)

Realização:
Kathryn Bigelow

Argumento:
James Cameron

Actores:
Ralph Fiennes - Lenny Nero
Angela Bassett - Lornette 'Mace' Mason
Juliette Lewis - Faith Justin
Tom Sizemore - Max Peltier


Los Angeles, 30 de Dezembro de 1999. Os festejos que celebram o final do milénio dominam toda a cidade, mas não se sobrepõem ao clima de tensão vincado pelos crescentes conflitos raciais que se intensificaram após o assassinato de um mediático rapper negro. A chave para a descoberta do incógnito homicida poderá estar, contudo, numa das gravações traficadas por Lenny, ex-polícia que se dedica ao comércio ilegal de registos de memórias que são reutilizados por quem está disposto a pagar para aceder a experiências visuais e sensoriais de terceiros. Lenny é, de resto, um dos principais utilizadores dos produtos que vende, usando-os para reviver momentos que partilhou com a sua ex-namorada Faith, agora amante de um poderoso editor musical.

Este é, em traços largos, o ponto de partida de "Estranhos Prazeres" (Strange Days), realizado por Kathryn Bigelow em 1995 e que, apesar de ter sido um flop comercial, ficou como um dos mais inspirados (e esquecidos) thrillers dos anos 90. Proposta noir de tons fim-de-milénio, o filme decorre em cenários futuristas que não diferem muito dos do mundo actual, afastando-se dos exageros inverosímeis que minam muitos títulos de ficção científica.

O argumento, da autoria de James Cameron (ex-marido da realizadora e que assume aqui o papel de produtor), investe em várias áreas sem perder coesão, indo da abordagem das fronteiras entre domínios reais e virtuais, passando pela xenofobia e paranóia e oferecendo ainda uma sólida base dramática sustentada por uma absorvente e atormentada história de amor em domínios cyberpunk.

Bigelow contorna com mestria lugares-comuns dos filmes de acção, desde logo pela inversão dos papéis masculinos e femininos - Lenny é fisicamente mais frágil do que a sua amiga, a guarda-costas Mace - ou pela escassez de explosões e demais utensílios de parafernália visual, apostando numa sobriedade que se revela indispensável para que surjam aqui muitas cenas de antologia - casos de uma sufocante perseguição automóvel, de sequências de fuga no meio da multidão que celebra a passagem de ano ou dos minutos iniciais, centrados no ponto de vista de um assaltante e filmados sem cortes.

Embora se encontrem aqui muitos momentos memoráveis pela forma como a realizadora constrói sequências de acção, com uma sofisticação e eficácia próximas das de Cameron ou McTiernan, "Estranhos Prazeres" vale igualmente por pequenos milagres de intensidade emocional, de que são exemplo aquele em que Faith interpreta "Hardly Wait", de PJ Harvey, enquanto é observada por um detroçado Lenny, ou muitos diálogos que o protagonista troca com Mace.

Estes dificilmente seriam conseguidos sem a notável dedicação de dois actores, Ralph Fiennes e Angela Bassett, ele equilibrando angústia e acessos espirituosos (e exibindo deliciosos tiques metrossexuais, entrando em sequências de acção de gravata e fato Armani), ela emanando determinação, coragem e lealdade na pele de Mace, a consciência de Lenny (por estas interpretações, ambos mereciam ser requisitados para interpretarem Gambit e Tempestade em "X-Men"). Destaque, ainda, para Juliette Lewis, que compõe uma apropriada femme fatale como Faith, e embora a sua personagem pudesse ser melhor explorada as situações em que brilha no palco já tornam a sua participação inesquecível.

O filme decorre equilibrando um romantismo dilacerado e uma vibrante descarga de adrenalina, e essa difícil combinação atinge o pico na última e fulgurante meia hora, onde a sobrevivência dos protagonistas fica cada vez mais comprometida. Os festejos nocturnos nas avenidas de LA proporcionam um cenário simultaneamente magnético e tenso, e a qualquer momento a celebração pode dar origem ao caos, possibilidade que Bigelow sabe sugerir e desenvolver com elegância visual, sentido atmosférico e um ritmo certeiro. De relevância considerável é também a banda-sonora, que além de PJ Harvey inclui canções de Tricky, Lori Carson, Skunk Anansie (que actuam no filme) ou dos menos recomendáveis Deep Forest.

Lançando bases para temas que seriam reaproveitados em "Existenz", de David Cronenberg, ou mesmo "Relatório Minoritário", de Steven Spielberg, "Estranhos Prazeres" não foi ainda superado por quaisquer sucessores mais ou menos directos, permanecendo como dos filmes mais injustamente idnorados quando se faz a triagem do melhor cinema da década de 90. Não obstante essa subestimação, é sempre um grande prazer revisitá-lo.

® Gonçalo Sá


terça-feira, março 11, 2008

Berlin Alexanderplatz

Título Original:
"Berlin Alexanderplatz" (1980)

Realização:
Rainer Werner Fassbinder

Argumento:
Rainer Werner Fassbinder

Actores:
Günter Lamprecht – Franz Biberkopf
Karlheinz Braun – Rechtsanwalt Löwenhund
Hannah Schygulla – Eva
Franz Buchrieser – Gottfried Meck


Berlin Alexanderplatz é o filme mais célebre de Rainer Werner Fassbinder. É a sua obra mais complexa, erudita e ambiciosa e um dos retratos mais admiráveis de sempre de uma cidade. Berlim não é apenas o quadro em que decorre a intriga, mas constitui, com o seu pitoresco, os seus contrastes e os seus segredos, o próprio assunto do filme. Porém, a grandiosidade do conjunto não ofusca o brilhantismo e a autonomia das suas partes integrantes. Cada um dos habitantes da cidade de Fassbinder é único e fascinante pelas suas peculiaridades e contradições.

O carácter contraditório do protagonista surge com particular evidência na segunda parte do filme. Sabemos que Franz Biberkopf não é mau e que até jurou à saída da prisão de Tegel fazer apenas o bem. Sabemos inclusivamente que ele não é anti-semita, até porque o primeiro amigo que fez após o cumprimento da sua pena foi um judeu. Porém, ele aceita vender o jornal Völkischer Beobachter nas ruas da cidade e abraça a ideologia nazi, seguindo o exemplo de muitos dos seus compatriotas, que também colocaram voluntariamente o poder nas mãos de Hitler. É um facto surpreendente e mesmo os melhores pensadores nunca contaram com a popularidade e eficácia dos nazis.

Sejam quais forem as razões de Franz Biberkopf, é indiscutível que ele não age por mero oportunismo. Ele acredita sinceramente no nazismo e a força das suas convicções surge com toda a pujança no confronto final com os comunistas. É uma sequência que vemos hoje com distanciamento e ironia, pois sabemos que os intervenientes lutam encarniçadamente por ideologias que teriam consequências igualmente desastrosas.

A maior ironia talvez até nem seja essa. Os comunistas alemães não só não conseguiram impedir a tomada do poder pelos nazis, como poderão, ainda que involuntariamente, ter contribuído decisivamente para o sucesso de Hitler. Com os seus apelos à violência popular, os dirigentes do KPD deram o pretexto ideal ao governo nazi para tomar medidas repressivas e criaram junto da população o receio, aliás infundado, de um grande levantamento bolchevista. Biberkopf parece estar plenamente consciente desses erros de estratégia, quando adverte: «De que vão vocês viver, espalha-brasas? Estão bêbedos de palavras! Só sabem causar confusão e tornar os outros odientos até ficarem mesmo maliciosos e acabarem com um de vocês!»

® Flávio Sousa


domingo, março 09, 2008

Duas Irmãs, um Rei

Título Original:
"The Other Boleyn Girl" (2008)

Realização:
Justin Chadwick

Argumento:
Peter Morgan, adaptação do romance homónimo de Philippa Gregory

Actores:
Natalie Portman - Ana Bolena
Scarlett Johansson - Maria Bolena
Eric Bana - Henrique Tudor/Henrique VIII
David Morrissey - Duque de Norfolk


Duas irmãs, Ana e Maria Bolena, são vítimas da ambição do pai e do tio, que as usam de modo a conseguir poder e prestígio através da conquista de favores de Henrique Tudor, rei da Inglaterra. Aproveitando-se do facto da rainha Catarina de Aragão ter perdido outro filho, o tio consegue que as duas irmãs sejam inseridas na corte. O rei repara imediatamente na beleza de Maria, que se torna sua amante e pouco tempo depois dá à luz um filho ilegítimo. Mesmo sabendo que a irmã ama verdadeiramente o rei, Ana quer a todo o custo seduzi-lo e ser rainha de Inglaterra. Com uma série de artimanhas, ela consegue a confiança do rei, que a deseja ardentemente, livra-se de Maria e de Catarina de Aragão e altera drasticamente o reino e a vida do povo. Até que ponto levará Ana a sua ambição?

Exteriormente temos um filme com cenários bonitos e um guarda-roupa de época impecável, em termos de argumento o filme só consegue ser satisfatório. Porque é bastante fácil perceber que recria apenas os “bastidores” da corte, as traições, as pessoas que se deixam corromper e outras em que nunca se deve confiar, levando a um choque de ambições opostas. Tudo oscila perante os devaneios de um rei e da sua activa sexualidade. A personagem que Eric Bana interpreta é fraca e pouco credível, ora balançado para o lado de Maria ora para o lado de Ana.

De facto as personagens mais marcantes no enredo de filme são mesmo as duas irmãs, embora o desempenho fantástico de Natalie Portman tenha ofuscado o de Scarlett Johansson. Duas belezas diferentes, duas promissoras actrizes da nova geração de Hollywood.

“Duas Irmãs, um Rei” (infeliz tradução para português do título do filme) é um filme que até se vê bem, mas poderia ter sido muito melhor se não se tivesse cingido tanto à vida íntima do rei. Desse modo não creio que se possa afirmar que este seja um filme histórico. Quem conhece o período histórico conturbado que a Inglaterra vivia no tempo de Henrique VIII, não o vê retratado no filme, talvez não fosse esse o objectivo, mas ajudava a suportar a visão romântica que ficou.

Talvez quem tenha lido o livro que deu origem a “Duas Irmãs, um Rei”, possa encontrar pontos de interesse que tenham escapado à atenção, ou tenham sido postos de lado pelo argumentista do filme.

® Isabel Fernandes


sexta-feira, março 07, 2008

Haverá Sangue

Título Original:
"There Will Be Blood" (2007)

Realização:
Paul Thomas Anderson

Argumento:
Paul Thomas Anderson, baseado no romance de Upton Sinclair

Actores:
Daniel Day-Lewis - Daniel Plainview
Dillon Freasier - H.W. Plainview
Paul Dano - Paul Sunday / Eli Sunday
Kevin J. O'Connor - Henry Brands


Filme sobre um período negro da História americana, em que o coração dos homens era dominado pela ganância e pela religião, as quais poderiam andar de mãos dadas ou de costas voltadas. Mais concretamente, relata a vida de um duro prospector de petróleo desde o seu primeiro poço bem sucedido até à decadência dos seus últimos dias. É uma história de esforço e crueldade, que bem poderia chamar-se Daniel Day-Lewis, porque o filme é ele.

Daniel Day-Lewis convence integralmente, sendo que o filme respira quando ele respira. À parte isso, ficamo-nos por uma história não muito inspirada sobre um homem odioso e a forma que este escolheu para singrar, entre a lama e as chamas do ouro negro, numa luta pela sobrevivência que rapidamente se transforma numa cultura de ódios que só poderiam consumi-lo. Não impede isso uma atmosfera electrizante e momentos de deleite cinéfilo, mas é difícil aguentar duas horas e quarenta de duração com o que Paul Thomas Anderson tem a oferecer, e a película vai lentamente decrescendo de intensidade, sendo apenas capaz de fazer levantar uma sobrancelha no clímax final.

Daniel Day Lewis reparte visibilidade com o excelente Kevin J. O’Connor (demasiado apagado neste filme) e com Paul Dano, que teve apenas quatro dias para preparar-se para o papel, já que tinha sido contratado para representar uma única cena (e outro personagem), mas impressionou o realizador ao ponto de este alterar o argumento para adequar-se ao novo actor. Dillon Freaser, que representa o pequeno filho do protagonista, nem sequer era actor, mas apenas um aluno de uma escola próxima das filmagens, no Texas; a mãe do menino quis saber quem era Daniel Day Lewis e ficou chocada quando alugou Gangs de Nova Iorque, pelo que desesperadamente lhe desencantaram uma cópia de A Idade da Inocência, onde ele é mais gentil e sociável.

Como curiosidade, o fumo provocado pela cena do incêndio de um poço de petróleo obrigou a que a produção de Este País Não É Para Velhos, dos Irmãos Cohen, a filmar em terrenos próximos, tivesse de fechar por um dia, até que o fumo se dissipasse.

® Ricardo Lopes Moura


quarta-feira, março 05, 2008

Reis e Rainhas

Título Original:
"Rois et Reine" (2004)

Realização:
Arnaud Desplechin

Argumento:
Arnaud Desplechin & Roger Bohbot

Actores:
Emmanuelle Devos - Nora Cotterelle
Mathieu Amalric - Ismaël Vuillard
Catherine Deneuve - Mme Vasset
Maurice Garrel - Louis Jenssens


Através de filmes como “Comment je me suis disputé… (ma vie sexuelle)” ou “Esther Kahn”, Arnaud Desplechin tem consolidado um elogiado percurso, impondo-se como um dos interessantes nomes do novo cinema francês.“Reis e Rainha (Rois et Reine), o seu título mais recente, confirma-o enquanto autor meritório, pois embora sendo uma película desequilibrada contém atributos suficientes que a tornam numa obra a ter em conta.

Apresentando duas histórias em paralelo, o filme segue Nora, cuja rotina de trabalho passada numa galeria de arte será interrompida pelo estado de saúde cada vez mais débil do seu pai, doente em fase terminal; e Ismael, que devido a um estilo de vida desregrado é internado, a pedido de terceiros, num hospital psiquiátrico.

Partindo destas duas situações, aparentemente desconexas, “Reis e Rainha” tece uma complexa teia de eventos, personagens e memórias, cujas esferas se relacionam, de forma mais ou menos demarcada, com a morte, a insanidade, a dissolução familiar, o amor ou a solidão.

Desplechin proporciona aqui uma atípica experiência cinematográfica, um excessivo puzzle onde a comédia e o drama se entrelaçam mas cuja fusão nem sempre é bem conseguida, pois a lógica espartana de “Reis e Rainha” tanto proporciona estimáveis cenas de antologia como sequências de relevância duvidosa.

O que permanece sempre seguro no filme são as competentíssimas interpretações dos actores, em especial as dos dois protagonistas: Emmanuelle Devos e Mathieu Amalric, a primeira seduzindo pelo estranho misto de vulnerabilidade e obstinação e o segundo pela irresistível irreverência que emana constantemente (percebe-se porque foi premiado com o César de Melhor Actor em 2004).

Intercalando realismo com ocasionais episódios oníricos, Desplechin gera um intenso olhar sobre peripécias do quotidiano urbano, salientando a falta de comunicação e a efemeridade das relações e atirando as suas personagens para uma espiral de dúvidas, imprevistos e inquietações.

Muitas vezes cruel, dilacerando os protagonistas através de um considerável humor negro, noutros casos emotivo e cativante, com momentos de um forte impacto emocional (como no comovente epílogo) “Reis e Rainha” é um filme esquizofrénico e imprevisível, o que é simultaneamente uma vantagem e uma limitação.

Tragicomédia com personagens à beira do limite, cortadas por uma crescente dilaceração emocional onde as situações parecem piorar a cada instante, a película descoordena o espectador, obrigando-o a reconsiderar certas características dos protagonistas e dos secundários devido à intersecção temporal (os flashbacks abundam) e narrativa (com duas histórias que, aos poucos, revelam ligações).

Os resultados nem sempre estão à altura da ousadia do filme (sobretudo algumas cenas de humor, condimentadas por um burlesco e nonsense desequilibrados), mas Desplechin consegue fazer com que as duas horas e meia de filme não se tornem cansativas, mesmo com alguma palha narrativa que poderia ter sido cortada.

Ambivalente e desigual, “Reis e Rainha” não é um filme fácil e contém contrastes abruptos que não o tornarão numa obra para todos os gostos, mas é também um vibrante e a espaços muito inventivo estudo de personagens que não tem medo de mergulhar, para o bem e para o mal, no âmago destas. Nem todos os filmes se podem orgulhar disso…

® Gonçalo Sá


domingo, março 02, 2008

Hannibal - A origem do mal

Título Original:
"Hannibal Rising" (2007)

Realização:
Peter Webber

Argumento:
Thomas Harris

Actores:
Gaspard Ulliel – Hannibal Lecter
Gong Li – Lady Murasaki
Dominic West – Inspector Popil
Rhys Ifans – Vladis Grutas


A personagem que marcou a carreira de Anthony Hopkins é uma lenda da história do cinema. O assassino canibal, teve a sua primeira aparição em “Caçada ao Amanhecer” (1986, Michael Mann, interpretado por Brian Cox), mas o momento de glória foi mesmo a interpretação de Hopkins no filme “O Silêncio dos Inocentes” (1991, Jonathan Demme). Anos mais tarde Hopkins repetiu o papel em “Hannibal” (2001, Ridley Scott) e em “Dragão Vermelho” (2002, Brett Ratner). Com tudo isto, faltava então saber as razões que levaram a que Hannibal se tornasse num assassino cruel e macabro.

Foi pedido a Thomas Harris, criador da personagem em questão, que escrevesse um guião original onde fosse contada a história da vida de Hannibal na sua juventude. Todo o mal tem a sua origem e é isso que é mostrado em “Hannibal – A Origem do Mal” realizado por Peter Webber.

Hannibal Lecter é apenas uma criança quando assiste aos horrores da segunda guerra mundial no leste europeu, que resultaram na morte dos seus familiares. Anos mais tarde, encontramo-lo num orfanato soviético onde é constantemente provocado pelos colegas. Um dia o jovem consegue fugir de lá e empreende uma longa jornada até aos arredores de Paris para procurar abrigo na casa de um tio. No entanto este já faleceu, e é a sua viúva, a bela Lady Murasaki, que o acolhe. É com a ajuda dela que Hannibal começa a estudar medicina, ao mesmo tempo que ganha gostos refinados na pintura, música e comida. Com o estudo do corpo humano, ao qual se dedica grande parte do seu tempo, Hannibal adquire um grande conhecimento que decide usar para se vingar dos tormentosos fantasmas do passado que afinal são criminosos de guerra bem reais.

Acredito que a escolha de Gaspard Ulliel para interpretar o jovem Lecter foi acertada, sem prejuízo do facto de ser um desconhecido para o grande público, tendo apenas algumas participações em produções francesas. Ao encarnar a personagem Ulliel consegue uma expressão cruel no olhar e um sorriso sarcástico que nos convence que é mesmo o retrato do assassino que conhecemos dos filmes anteriores, desempenhado por Hopkins. “Hannibal – A origem do mal” é um filme escuro, violento e com algum suspense, que nos mostra um jovem sofrido que exorciza os seus demónios interiores de tal forma que perde o que há de humano em si e se transforma num monstro.

® Isabel Fernandes